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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Velho



Por Nelson Rodrigues:

Em recente confissão, contei a minha visita à casa de uma grã-fina que, de três em três meses, é capa de Manchete. E, de fato, sempre que Justino Martins está em apertos, vai ao arquivo e apanha a cara da minha belíssima anfitriã. O leitor nem desconfia que já viu a mesmíssima capa umas quinze vezes. Não há nada mais parecido com uma grã-fina do que outra grã-fina. Por dentro e por fora, todas se parecem. Quem viu uma, viu as outras.


Entro no palácio e nada descreve a minha perplexidade. Conheço, de longa data, a dona da casa. Mas como identificá-la, se lá todas se pareciam entre si como soldadinhos de chumbo? Cumprimentei umas oito, na ilusão de que era a própria. Até que uma delas, ligeiramente mais lânguida, ligeiramente mais afetada que as demais, suspirou: - “Até que enfim veio à minha casa!”. Fez-se luz em meu espírito. Era aquela.


Bem. Estou-me perdendo no secundário em prejuízo do essencial. O que eu queria dizer é que lá passei umas cinco horas. E, até o fim da noite, só se ouviu um nome e só se falou de uma figura: Marx. Tudo era marxista. O mordomo de casaca devia ser outro marxista. Idem, os garçons dos salgadinhos, uísque e champanhe. E Marx não era apenas Marx. Não. De um momento para outro, passou a ser “o velho”. Damas e cavalheiros diziam “o velho” com uma salivação intensa.


Foi quando, a folhas tantas, alguém lembrou que “o velho” era dado a furúnculos. Houve um frêmito de volúpia geral e inconfessável. Parece meio difícil emprestar qualquer transcendência a uma furunculose. Pois bem. Havia, ali, um tal clima marxista que os furúnculos do “velho” pareciam mais resplandecentes do que as chagas de Cristo. Os decotes palpitaram. Os cílios postiços tremeram. Havia como que uma voluptuosidade difusa, valorizada, atmosférica. E, de repente, Marx deixava de ser o profeta, o gênio, o santo. Parecia mais um fauno de tapete, torpe e senil. Ao passo que as damas presentes seriam ninfas também de tapete.


Por aí se vê que uma simples furunculose pode deflagrar um misterioso surto erótico. Saí de lá às quatro da manhã e sem me despedir. Não foi incivilidade, absolutamente. É que eu reincidia na mesma confusão visual. Como reconhecer a anfitriã, se todas as presentes eram iguaizinhas umas às outras? Vim para casa e pensava em tudo o que vira e ouvira no sarau grã-fino.


Eis o que eu pensava: “Como a nossa alta burguesia é marxista!”. E não só a alta burguesia. Por toda parte, só esbarramos, só tropeçamos em marxistas. Um turista que por aqui passasse havia de anotar em seu caderninho: - “O Brasil tem 80 milhões de marxistas”. Hoje, o não-marxista sente-se marginalizado, uma espécie de leproso político, ideológico, cultural, etc. etc. Só um herói, ou um santo, ou um louco, ousaria confessar, publicamente: - “Meus senhores e minhas senhoras, eu não sou marxista, nunca fui marxista. E mais: - considero os marxistas de minhas relações uns débeis mentais de babar na gravata”.


Mas contei o episódio da furunculose para concluir: - como nós conhecemos Marx! E o conhecemos na sua intimidade doméstica, prosaica e profunda. Somos autoridades em seus furúnculos. Do mesmo modo, estamos informadíssimos sobre as suas tosses, bronquites, asmas, aerofagias etc. etc. Resta apenas uma pergunta: - e teremos a mesma intimidades com os seus escritos? Aqui se insinua a minha primeira dúvida.


Senão, vejamos. Há três ou quatro dias, fui eu a um sarau político. Lá, como no grã-finismo, o marxismo reinava. Cheguei disposto às provocações mais sórdidas. Meus bolsos estavam entupidos de notas. Reuni a fina flor da “festiva” e comecei: “venham ouvir umas piadas bacanérrimas. Ouçam, ouçam!”. E, de repente, tornei-me extrovertido, plástico, histriônico, como um camelô da rua Santa Luzia. Promovia idéias como quem vende laranjas, canetas-tinteiro, pentes, isqueiros, calicidas.


Logo juntou gente. E comecei a ler frases de recente leitura: - “O imperialismo é a tarefa dos povos dominantes – Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos”. Estes últimos “eram o país mais progressista do mundo”. “Contra o imperialismo russo, a salvação é o imperialismo britânico.” Outra: - “O defeito dos ingleses é que não são bastante imperialistas”. Quanto à história, “avança de leste para oeste”. O colonialismo é progressista porque os povos domináveis e colonizáveis só têm para dar “a estupidez primitiva”. O budismo é “o culto bestial da natureza”.

E que dizer da China? É uma “civilização que apodrece”. Por outro lado, a vitória dos Estados Unidos sobre o México, em 1848, foi uma felicidade para o próprio México. Dizia o autor, que eu citava: - “Presenciamos a conquista do México e regozijamo-nos, porque este país, fechado em si mesmo, dilacerado por guerras civis e negando-se a toda evolução, seja precipitado violentamente no movimento histórico. No seu próprio interesse, terá de suportar a tutela que, desde esse momento, os Estados Unidos exercerão sobre ele”.


Por outro lado, é maravilhosa a sujeição da Índia à Inglaterra. “A Alemanha é um povo superior e os latinos e os eslavos, mera gentalha.” Ainda sobre os eslavos: - “Povos piolhentos, estes dos Bálcãs, povos de bandidos”. Os búlgaros, em especial, são “um povo de suínos” que “melhor estariam sob o domínio turco”. Em suma: todos esses povos eslavos são “povos anões”, “escórias de uma civilização milenar”. Mais ainda: - “A expansão russa para o Ocidente é a expansão da barbárie” etc. etc.


Durante duas horas li para a “festiva”. Por fim, embolsei as notas e, arquejante, falei: - “Vocês ouviram. O autor ou autores citados já morreram. Quero saber se teriam coragem de cuspir na cova de quem escreveu tudo isso?”. E outra pergunta: - “Quem pensa assim, e escreve assim, é um canalha? Respondam”. Em fulminante resposta, todos disseram: - “É um canalha!”. Ainda os adverti: - “Calma, calma. São dois os autores! Vocês têm certeza de que são dois canalhas? E canalhas abjetos?”. Não houve uma única e escassa dúvida. Os marxistas ali presentes juraram que os autores eram “canalhas” e abjetos. E, então, só então, alcei a fronte e anunciei: - “Agora ouçam os nomes dos canalhas”. Pausa e disse: - “Marx e Engels”. Fez-se na sala um silêncio ensurdecedor. Repeti: “Marx e Engels, os dois pulhas, segundo vocês”.


Tudo aquilo estava em ‘Marx et la politique internationale’, por Kostas Papaloanou etc. etc. Os dois, Marx e Engels, eram paladinos fanáticos do imperialismo, do colonialismo, admiradores dos ianques, russófobos. Disseram mais: - “A revolução proletária acarretará um implacável terrorismo até o extermínio desses povos eslavos”.


Os marxistas que me ouviam eram poetas, romancistas, sociólogos, ensaístas. Intelectuais da mais alta qualidade. E entendiam tanto de Marx quanto de um texto chinês de cabeças para baixo. Eis a verdade: somos analfabetos em Marx, dolorosamente analfabetos em Marx.


Crônica publicada em O Globo em 3.05.1968 - Extraído do Blog do Contra.

Mais artigo do Nelson Rodriques, aqui

Я∑∆ç◊и∆Я∆ (Reaçonaria)



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